Nelson Maleiro, com a maça de golpear o gongo, em programa de calouros na TV.
Não se apaga a história, a memória, mas bem que a nossa anda precisando reacender alguns capítulos, oferecer maior visibilidade a muitos empreendedores pioneiros, que abriram novos caminhos e possibilidades, exatamente como fez Nelson Maleiro.
Na verdade, eu não escrevi quase nada nesta publicação. São transcrições, provisórias, de fontes citadas ao longo da postagem. Se eu me propuser a falar sobre Nelson Maleiro tudo o que poderei contar é de dois rápidos encontros que mantive com ele, na oficina da J.J. Seabra, (Barroquinha) quando da encomenda de umas ferragens para atabaques, ali pelo no início da década de 1980. Ele já era uma lenda, mas uma lenda viva e apenas para poucos, que conheciam a importância de seu trabalho. Quantos artesãos será que podemos encontrar na atualidade, os quais terão aprendido alguma fração da arte e da magia que se aconteciam naquela "tenda dos milagres"?
Na verdade, eu não escrevi quase nada nesta publicação. São transcrições, provisórias, de fontes citadas ao longo da postagem. Se eu me propuser a falar sobre Nelson Maleiro tudo o que poderei contar é de dois rápidos encontros que mantive com ele, na oficina da J.J. Seabra, (Barroquinha) quando da encomenda de umas ferragens para atabaques, ali pelo no início da década de 1980. Ele já era uma lenda, mas uma lenda viva e apenas para poucos, que conheciam a importância de seu trabalho. Quantos artesãos será que podemos encontrar na atualidade, os quais terão aprendido alguma fração da arte e da magia que se aconteciam naquela "tenda dos milagres"?
"Nelson Cruz chega à vida no dia 20 de janeiro de 1909. Nasceu em Saubara, então distrito de Santo Amaro da Purificação. Aos 10 anos veio para Salvador onde começou a trabalhar como embalador na loja Bahia Elétrica, na Baixa dos Sapateiros. A partir daí, ele inicia sua gloriosa carreira de sucesso. Sua versátil criatividade de início se direciona para o fabrico de malas, o que lhe valeu o cognome com que toda a Bahia passou a lhe reverenciar: NELSON MALEIRO.
A arte sempre foi uma força que se apoderou daquele homem robusto que certamente ultrapassava a 100 quilos. Depois do fabrico de malas, colocou sua inteligência a serviço das alegorias que tanto marcaram o carnaval da Bahia. Inicialmente com os Cavalheiros de Bagdá, uma de suas criações mais expressivas. Em outro momento, colaborou com Os Internacionais, que durante vários anos teve o seu desfile abrilhantado pela "Lâmpada de Aladim" e pelo "Pandeiro Cigano", algumas das inúmeras invenções de Nelson Maleiro para o tradicional bloco."
"Atuante não só no carnaval, Nelson Maleiro já afamado na cidade de Salvador, também era presença marcante na Lavagem do Bonfim com sua bicicleta de vários lugares, sobre a qual levava alguma alegoria, enriquecida de alguma inscrição pertencente à festa.
A versatilidade era uma marca de Nelson Maleiro. Na década de 40, ele organizou a Orquestra de Jazz Vera Cruz, da qual participava tocando sax tenor. Maleiro foi também presença, vários anos, nas noites de Reis em Salvador, como integrante dos ternos Arigofe e Terno do Sol. Como desportista, foi remador do Clube de Regatas Vera Cruz.
Por tudo isso, Nelson Maleiro é figura inesquecível na cultura popular da Bahia. Se hoje a linguagem percussiva é destaque em nosso Carnaval, virando-se as páginas da história encontraremos Nelson Maleiro como precursor da fabricação e conseqüente valorização dos timbaus, agogôs, atabaques, tumbadoras e uma variedade de instrumentos: na medida em que não só os confeccionava como também sabia tocá-los muito bem."
Fonte: Cadernos de Educação do Ilê Aiyê - Vol. V - Pérolas Negras do Saber
GIGANTE DE BAGDÁ
"Nelson Cruz - Músico, criador de instrumentos de percussão, carnavalesco, artista, desportista, animador cultural e compositor.
Nasceu em 20 de janeiro de 1909, em Saubara, distrito de Santo Amaro da Purificação. Veio para Salvador aos 10 anos de idade, trazido por uma família amiga de seus pais para trabalhar como embalador na loja Bahia Elétrica. Mais tarde, tendo grande habilidade, dedicou-se a fabricar malas, recebendo a alcunha de Nelson Maleiro.
Os carnavais baianos sofreram grande influência de Nelson Maleiro pois era integrante do bloco Mercadores de Bagdá e depois, em 1959, com uma ala dissidente dos Mercadores, fundou o bloco Cavalheiros de Bagdá, que em 1960 saiu às ruas pela primeira vez no carnaval, sendo vencedor com sua criação de O Gigante de Bagdá.
Todos os anos, o bloco apresentava criações suas como: baleia jogando água no povo, dragão que expelia fogo, Tubarão, King-Kong, dentre outras."
A arte sempre foi uma força que se apoderou daquele homem robusto que certamente ultrapassava a 100 quilos. Depois do fabrico de malas, colocou sua inteligência a serviço das alegorias que tanto marcaram o carnaval da Bahia. Inicialmente com os Cavalheiros de Bagdá, uma de suas criações mais expressivas. Em outro momento, colaborou com Os Internacionais, que durante vários anos teve o seu desfile abrilhantado pela "Lâmpada de Aladim" e pelo "Pandeiro Cigano", algumas das inúmeras invenções de Nelson Maleiro para o tradicional bloco."
Mercadores de Bagdá, forte presença de Nelson Maleiro no carnaval baiano.
"Atuante não só no carnaval, Nelson Maleiro já afamado na cidade de Salvador, também era presença marcante na Lavagem do Bonfim com sua bicicleta de vários lugares, sobre a qual levava alguma alegoria, enriquecida de alguma inscrição pertencente à festa.
A versatilidade era uma marca de Nelson Maleiro. Na década de 40, ele organizou a Orquestra de Jazz Vera Cruz, da qual participava tocando sax tenor. Maleiro foi também presença, vários anos, nas noites de Reis em Salvador, como integrante dos ternos Arigofe e Terno do Sol. Como desportista, foi remador do Clube de Regatas Vera Cruz.
Por tudo isso, Nelson Maleiro é figura inesquecível na cultura popular da Bahia. Se hoje a linguagem percussiva é destaque em nosso Carnaval, virando-se as páginas da história encontraremos Nelson Maleiro como precursor da fabricação e conseqüente valorização dos timbaus, agogôs, atabaques, tumbadoras e uma variedade de instrumentos: na medida em que não só os confeccionava como também sabia tocá-los muito bem."
Fonte: Cadernos de Educação do Ilê Aiyê - Vol. V - Pérolas Negras do Saber
GIGANTE DE BAGDÁ
"Nelson Cruz - Músico, criador de instrumentos de percussão, carnavalesco, artista, desportista, animador cultural e compositor.
Nasceu em 20 de janeiro de 1909, em Saubara, distrito de Santo Amaro da Purificação. Veio para Salvador aos 10 anos de idade, trazido por uma família amiga de seus pais para trabalhar como embalador na loja Bahia Elétrica. Mais tarde, tendo grande habilidade, dedicou-se a fabricar malas, recebendo a alcunha de Nelson Maleiro.
Os carnavais baianos sofreram grande influência de Nelson Maleiro pois era integrante do bloco Mercadores de Bagdá e depois, em 1959, com uma ala dissidente dos Mercadores, fundou o bloco Cavalheiros de Bagdá, que em 1960 saiu às ruas pela primeira vez no carnaval, sendo vencedor com sua criação de O Gigante de Bagdá.
Todos os anos, o bloco apresentava criações suas como: baleia jogando água no povo, dragão que expelia fogo, Tubarão, King-Kong, dentre outras."
Desfile dos Mercadores de Bagdá - 1959
Photo Pierre Verger©Fundação Pierre Verger
Photo Pierre Verger©Fundação Pierre Verger
"Por muitos anos foi destaque do carnaval baiano, trabalhou para o clube carnavalesco Os Internacionais durante 9 anos, confeccionando os carros alegóricos deste bloco, como pandeiro, barco, lâmpada maravilhosa de Aladin, pirâmides do Egito e outros.
Foi o baiano precursor dos instrumentos de percussão pois fabricava, consertava e tocava instrumentos como: tamborim com e sem ferragem, bongô, timbau, atabaque, tumbadora, bateria completa, pandeiro, agogô, dentre outros.
Como percussionista inovador, apresentava-se tocando bombo com duas baquetas, em vários blocos como Vai Levando, Barroquinha Zero Hora, Ritmistas do Samba, Nega Maluca, etc...
Tocava também sax-tenor e barítono nos bailes da época com o jazz Vera Cruz, que criou, e nos ternos de reis onde participou, como: Arigofe, Estrela do Oriente e Terno do Sol, onde foi campeão por diversas vezes.
Fundou o clube de regatas Vera Cruz, participando de várias competições no Dique do Tororó com um barco de sua fabricação.
Participou da Hora da Criança nas apresentações das peças Narizinho e Monetinho, na orquestra, tocando maracas e cujas apresentações foram no teatro do Instituto Normal da Bahia.
Na Lavagem do Bonfim sempre se apresentava com uma bicicleta de seis lugares com frases como: A água que lava o bem e o mal, a água lava tudo, só não lava a língua desta gente.
No programa Escada para o Sucesso, da TV Itapuã, como o Gigante, "gongava" os calouros que desafinavam.
Como compositor fez a música Pescaria de Tubarão para os Cavalheiros de Bagdá.
Ao morrer, deixou 5 filhos (só tem 3 vivos), 14 netos e 2 bisnetos.
Muito católico, freqüentava o Mosteiro de São Bento e, no dia de seu aniversário, ia à igreja do Senhor do Bonfim, além de, toda Sexta-feira, distribuir esmolas na sua morada e local de trabalho, na Barroquinha."
Fonte: Talentos Musicais da Bahia: dos Inéditos aos Inesquecíveis.Foi o baiano precursor dos instrumentos de percussão pois fabricava, consertava e tocava instrumentos como: tamborim com e sem ferragem, bongô, timbau, atabaque, tumbadora, bateria completa, pandeiro, agogô, dentre outros.
Como percussionista inovador, apresentava-se tocando bombo com duas baquetas, em vários blocos como Vai Levando, Barroquinha Zero Hora, Ritmistas do Samba, Nega Maluca, etc...
Tocava também sax-tenor e barítono nos bailes da época com o jazz Vera Cruz, que criou, e nos ternos de reis onde participou, como: Arigofe, Estrela do Oriente e Terno do Sol, onde foi campeão por diversas vezes.
Fundou o clube de regatas Vera Cruz, participando de várias competições no Dique do Tororó com um barco de sua fabricação.
Participou da Hora da Criança nas apresentações das peças Narizinho e Monetinho, na orquestra, tocando maracas e cujas apresentações foram no teatro do Instituto Normal da Bahia.
Na Lavagem do Bonfim sempre se apresentava com uma bicicleta de seis lugares com frases como: A água que lava o bem e o mal, a água lava tudo, só não lava a língua desta gente.
No programa Escada para o Sucesso, da TV Itapuã, como o Gigante, "gongava" os calouros que desafinavam.
Como compositor fez a música Pescaria de Tubarão para os Cavalheiros de Bagdá.
Ao morrer, deixou 5 filhos (só tem 3 vivos), 14 netos e 2 bisnetos.
Muito católico, freqüentava o Mosteiro de São Bento e, no dia de seu aniversário, ia à igreja do Senhor do Bonfim, além de, toda Sexta-feira, distribuir esmolas na sua morada e local de trabalho, na Barroquinha."
Amandina Angélica Ribeiro de Santana e Milta de Azevedo Santos
"Em 1974, duas tradicionais agremiações carnavalescas de negros se extinguiram: a escola de samba Diplomatas de Amaralina e o clube Mercadores de Bagdá. Nelson Maleiro, a grande figura deste último, indignado com a falta de apoio dos poderes públicos, queirmou os instrumentos e adereços do Mercadores de Bagdá em plena via pública, após o carnaval. Desgostoso, esquecido, o "Gigante de Bagdá" morreu aos 73 anos, em junho de 1982."
Fonte:
Mário Gusmão: um príncipe negro na terra dos dragões da maldade - Jeferson Afonso Bacelar
Notas [105], pgs. 194-195
Nelson Maleiro
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Por: Dante Matisse
Jornal ENTRELINHAS - Faculdades Jorge Amado
Ano II - Nº 8 p.10 - Outubro de 2003
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Por: Dante Matisse
Jornal ENTRELINHAS - Faculdades Jorge Amado
Ano II - Nº 8 p.10 - Outubro de 2003
http://www.fja.edu.br/publicacoes/p_e_08.pdf
"Tenda dos milagres
Correio da Bahia - Quinta-Feira, 03 de Fevereiro de 2005
A oficina de criação de instrumentos na Barroquinha é a pioneira na percussão em Salvador
[Pablo Reis]
"Incrustada em uma espécie de subsolo de um casarão na Barroquinha, lá está a caverna. Reis da música vão visitar o plebeu que, com seu toque mágico e misterioso, transforma couro e madeira em harmonia percussiva. Para lá, rumam Gilberto Gil, Raul Seixas e os Panteras, Novos Baianos, Dorival Caymmi, Trio Nordestino, Sérgio Cardoso, Alcivandro Luz, Djalma Correa. O mago do povo recebe todos com a mesma tranqüilidade de buda nagô e devolve a confiança e o prestígio com instrumentos inigualáveis. É um artesão que coloca nas mãos dos artistas a matéria-prima para o sucesso musical.
O mercado de percussão na Bahia é menor do que o espírito visionário de Nelson Cruz, o indomável criador. É num momento de provocação reflexiva que ele resolve fazer com o som a imagem da novidade. No início dos anos 60, conjuga acústica e eletricidade em uma invenção tão admirável para uma pessoa que não concluiu o primário, quanto uma sinfonia seria para um surdo. Fascinado pelo poder sedutor da plasticidade, ele fabrica uma bateria que se ilumina toda vez que é percutida. É um desafio à altura de quem já tinha dominado todas as técnicas de produção de atabaques, timbaus, baterias, agogôs, tumbadoras. Precisar de percussão em Salvador nas décadas de 50 e 60 e não procurar a loja de nº 28 na Barroquinha é como ser turista na Igreja do Bonfim e não amarrar uma fitinha no pulso.
Décadas depois de contribuir como inovador, Maleiro só vai ser reconhecido por quem se permitiu um interesse histórico e cultural acima do senso comum. "Na época, o que ele conseguia fazer era uma coisa milagrosa. Já produzia, por exemplo, o tamborim quadrado, hoje muito comum em escolas de samba", recordará o compositor e carnavalesco Walter Queiroz.
Entre as prateleiras lotadas de troféus carnavalescos decorando seu atelier improvisado, Nelson imagina e experimenta. Usa forro de celulóide nos bongôs, aprimora as técnicas de aplicação de tarrachas e conquista a preferência hegemônica de quem busca instrumentos de alto nível. Esse será o ofício principal para o sustento da família e o subsídio para transferir a Barroquinha da categoria de gueto em reduto de difusão artística. "Eu queria ser baterista e, naquela época que a industrialização de instrumentos não tinha chegado na Bahia, a única pessoa que fazia do modelo americano era Maleiro", dirá Jaime Sodré, sobre uma fase de adolescente em que convivia na oficina. "Descíamos lá para comprar produtos de qualidade, feitos de couro de onça, jacaré, pele de avestruz. A gente chamava bateria feita de facão", confirmará o músico Waldir Serrão, o Big Ben. "Ele conseguia fazer bem, justamente porque sabia tocar".
A habilidade para tocar sete instrumentos, inclusive de sopro, faz com que Maleiro monte a própria orquestra de rua para tocar em blocos e festas de largo. Mas a clientela cresce é para seus produtos sonoros de grande repercussão. "Se eu não me engano, ele era o maior confeccionador de atabaques para os cultos do candomblé", apostará, em 2004, a então secretária municipal da Reparação, Arany Santana. É da ligação com as cerimônias religiosas que Maleiro ganha a simpatia do francês Pierre Verger, impressionado com seu talento artesanal.
Divisor de águas
No ano de 2003, o estudante de música da Universidade Federal da Bahia, Aaron Roberto de Melo Lopes, fará uma pesquisa nomeada Os instrumentos musicais de Pierre Verger. Além das conclusões sobre o inestimável legado cultural do franco-baiano, ele encontrará uma preciosidade histórica: Nelson Maleiro como epicentro do que se chamará processo de inovação. "Esta pesquisa revelou-nos um personagem até então oculto e esquecido da história musical baiana: Nelson Maleiro, um fabuloso construtor de instrumentos, que modificou o curso da construção instrumental baiana, inclusive dos atabaques do candomblé. Ele tem de ser estudado de uma forma mais profunda, levantadas fontes a seu respeito, pois não conseguimos nenhuma, para merecer o seu lugar na história baiana: como divisor de águas da construção de instrumentos da Bahia".
Nas páginas da monografia ficarão registradas as técnicas originais, as soluções encontradas para melhorar a sonoridade dos equipamentos e as relações estabelecidas com o candomblé. "Seus atabaques eram construídos em tiras, como `quartinha´, e de forma tão boa, que depois dele os atabaques de corpo inteiro praticamente deixaram de ser construídos, ou seja, a técnica atual de construção de atabaques, em tiras, foi melhor elaborada e desenvolvida por ele (informação dita por Roque D´Ogum). Por estes fatores, então, Nelson foi uma espécie de interlocutor invisível que permeia toda a história da construção dos instrumentos da Bahia, pois todos os nossos entrevistados souberam falar ao seu respeito, e quase todos compraram instrumentos com ele, elogiando a grande capacidade que ele tinha de fabricar bons instrumentos, além de frisarem a importância que ele teve no que se refere à construção de instrumentos".
A proximidade com o candomblé será analisada como estritamente profissional pelos familiares próximos. "Meu padrinho era católico fervoroso", garantirá a afilhada Ivete Cardoso, em depoimento reforçado pelo irmão, Ivan Lima. Outros convivas terão opinião contrária. "Entendo que ele não quisesse divulgar essa devoção. Naquele tempo, não era o de hoje, quem tinha as coisas do candomblé deixava guardado", observará o professor, antropólogo e estudioso da negritude, Jaime Sodré.
Suor
Dentro da oficina, o suor de Maleiro escorre da cabeça lisa em direção aos tambores com caixas-claras, surdos de duas peles e bombos imensos, instrumentos que o musicólogo Aaron escreverá só ter visto semelhantes em fotos de Verger retratando rituais no Peru e na Bolívia. A produção é crescente para atender a uma demanda ávida. O retorno é uma renda razoável, suficiente para manter a família e socializar a importância do imóvel na Barroquinha para a comunidade. Espécie de apóstolo do povo sem proselitismo ou histrionismo, passa a receber, sempre às sextas-feiras, filas de pedintes que tentam um pouco de ajuda financeira ou material. Em três ocasiões, ganha prêmios na Loteria Federal e simplesmente doa os bilhetes para gente humilde do bairro.
Quando a Barroquinha alaga, Maleiro improvisa um barco e transporta os moradores. Ainda aproveita um pouco do talento musical para a composição de marchinhas com alto teor de crítica social: "Choveu, choveu!/ Então a Barroquinha encheu/ Quando chove é um chuá/ Só sai de casa quem sabe nadar/ Na Amaralina tá chuviscando/ Na Barroquinha tem que sair nadando/".
Por um momento, ele retorna para aquele mesmo local, só que apenas alguns anos após a sua chegada de Saubara com 10 anos. Adolescente, conseguiu o emprego de embalador na Bahia Elétrica, uma loja próxima ao antigo Cine Olympia. Em pouco tempo, notou o potencial de faturamento de um mercado promissor na época, a produção de malas. No século XXI, serão fabricadas por indústrias em larga escala, mas na época são feitas de forma artesanal e usadas não só para viagens, mas também para guardar roupas. São grandes baús de madeira que substituem os armários destinados para os mais ricos. Os produtos de Maleiro eram considerados perfeitos e a Bahia passou a reverenciá-lo.
Com a fama, os clientes acorriam para a Avenida Baltazar, que virou em pouco tempo o "Beco do Maleiro". E a freguesia virou de artistas quando ele mudou a produção para instrumentos percussivos. Ali está ele, trabalhando e imaginando formas de ajudar o povo que não teve o mesmo talento formidável. Milagreiro ou não, tornara-se sensível à dor e aos apelos dos próximos. Em agosto de 1975, fará uma viagem para Saubara, levando a afilhada Ivete. Na festa do padroeiro do município, São Domingos Gusmão, receberá homenagens por ter dado dinheiro para a recuperação da igreja. Será uma das últimas demonstrações de respeito que receberá em vida."
Correio da Bahia - Quinta-Feira, 03 de Fevereiro de 2005
A oficina de criação de instrumentos na Barroquinha é a pioneira na percussão em Salvador
[Pablo Reis]
"Incrustada em uma espécie de subsolo de um casarão na Barroquinha, lá está a caverna. Reis da música vão visitar o plebeu que, com seu toque mágico e misterioso, transforma couro e madeira em harmonia percussiva. Para lá, rumam Gilberto Gil, Raul Seixas e os Panteras, Novos Baianos, Dorival Caymmi, Trio Nordestino, Sérgio Cardoso, Alcivandro Luz, Djalma Correa. O mago do povo recebe todos com a mesma tranqüilidade de buda nagô e devolve a confiança e o prestígio com instrumentos inigualáveis. É um artesão que coloca nas mãos dos artistas a matéria-prima para o sucesso musical.
O mercado de percussão na Bahia é menor do que o espírito visionário de Nelson Cruz, o indomável criador. É num momento de provocação reflexiva que ele resolve fazer com o som a imagem da novidade. No início dos anos 60, conjuga acústica e eletricidade em uma invenção tão admirável para uma pessoa que não concluiu o primário, quanto uma sinfonia seria para um surdo. Fascinado pelo poder sedutor da plasticidade, ele fabrica uma bateria que se ilumina toda vez que é percutida. É um desafio à altura de quem já tinha dominado todas as técnicas de produção de atabaques, timbaus, baterias, agogôs, tumbadoras. Precisar de percussão em Salvador nas décadas de 50 e 60 e não procurar a loja de nº 28 na Barroquinha é como ser turista na Igreja do Bonfim e não amarrar uma fitinha no pulso.
Décadas depois de contribuir como inovador, Maleiro só vai ser reconhecido por quem se permitiu um interesse histórico e cultural acima do senso comum. "Na época, o que ele conseguia fazer era uma coisa milagrosa. Já produzia, por exemplo, o tamborim quadrado, hoje muito comum em escolas de samba", recordará o compositor e carnavalesco Walter Queiroz.
Entre as prateleiras lotadas de troféus carnavalescos decorando seu atelier improvisado, Nelson imagina e experimenta. Usa forro de celulóide nos bongôs, aprimora as técnicas de aplicação de tarrachas e conquista a preferência hegemônica de quem busca instrumentos de alto nível. Esse será o ofício principal para o sustento da família e o subsídio para transferir a Barroquinha da categoria de gueto em reduto de difusão artística. "Eu queria ser baterista e, naquela época que a industrialização de instrumentos não tinha chegado na Bahia, a única pessoa que fazia do modelo americano era Maleiro", dirá Jaime Sodré, sobre uma fase de adolescente em que convivia na oficina. "Descíamos lá para comprar produtos de qualidade, feitos de couro de onça, jacaré, pele de avestruz. A gente chamava bateria feita de facão", confirmará o músico Waldir Serrão, o Big Ben. "Ele conseguia fazer bem, justamente porque sabia tocar".
A habilidade para tocar sete instrumentos, inclusive de sopro, faz com que Maleiro monte a própria orquestra de rua para tocar em blocos e festas de largo. Mas a clientela cresce é para seus produtos sonoros de grande repercussão. "Se eu não me engano, ele era o maior confeccionador de atabaques para os cultos do candomblé", apostará, em 2004, a então secretária municipal da Reparação, Arany Santana. É da ligação com as cerimônias religiosas que Maleiro ganha a simpatia do francês Pierre Verger, impressionado com seu talento artesanal.
Divisor de águas
No ano de 2003, o estudante de música da Universidade Federal da Bahia, Aaron Roberto de Melo Lopes, fará uma pesquisa nomeada Os instrumentos musicais de Pierre Verger. Além das conclusões sobre o inestimável legado cultural do franco-baiano, ele encontrará uma preciosidade histórica: Nelson Maleiro como epicentro do que se chamará processo de inovação. "Esta pesquisa revelou-nos um personagem até então oculto e esquecido da história musical baiana: Nelson Maleiro, um fabuloso construtor de instrumentos, que modificou o curso da construção instrumental baiana, inclusive dos atabaques do candomblé. Ele tem de ser estudado de uma forma mais profunda, levantadas fontes a seu respeito, pois não conseguimos nenhuma, para merecer o seu lugar na história baiana: como divisor de águas da construção de instrumentos da Bahia".
Nas páginas da monografia ficarão registradas as técnicas originais, as soluções encontradas para melhorar a sonoridade dos equipamentos e as relações estabelecidas com o candomblé. "Seus atabaques eram construídos em tiras, como `quartinha´, e de forma tão boa, que depois dele os atabaques de corpo inteiro praticamente deixaram de ser construídos, ou seja, a técnica atual de construção de atabaques, em tiras, foi melhor elaborada e desenvolvida por ele (informação dita por Roque D´Ogum). Por estes fatores, então, Nelson foi uma espécie de interlocutor invisível que permeia toda a história da construção dos instrumentos da Bahia, pois todos os nossos entrevistados souberam falar ao seu respeito, e quase todos compraram instrumentos com ele, elogiando a grande capacidade que ele tinha de fabricar bons instrumentos, além de frisarem a importância que ele teve no que se refere à construção de instrumentos".
A proximidade com o candomblé será analisada como estritamente profissional pelos familiares próximos. "Meu padrinho era católico fervoroso", garantirá a afilhada Ivete Cardoso, em depoimento reforçado pelo irmão, Ivan Lima. Outros convivas terão opinião contrária. "Entendo que ele não quisesse divulgar essa devoção. Naquele tempo, não era o de hoje, quem tinha as coisas do candomblé deixava guardado", observará o professor, antropólogo e estudioso da negritude, Jaime Sodré.
Suor
Dentro da oficina, o suor de Maleiro escorre da cabeça lisa em direção aos tambores com caixas-claras, surdos de duas peles e bombos imensos, instrumentos que o musicólogo Aaron escreverá só ter visto semelhantes em fotos de Verger retratando rituais no Peru e na Bolívia. A produção é crescente para atender a uma demanda ávida. O retorno é uma renda razoável, suficiente para manter a família e socializar a importância do imóvel na Barroquinha para a comunidade. Espécie de apóstolo do povo sem proselitismo ou histrionismo, passa a receber, sempre às sextas-feiras, filas de pedintes que tentam um pouco de ajuda financeira ou material. Em três ocasiões, ganha prêmios na Loteria Federal e simplesmente doa os bilhetes para gente humilde do bairro.
Quando a Barroquinha alaga, Maleiro improvisa um barco e transporta os moradores. Ainda aproveita um pouco do talento musical para a composição de marchinhas com alto teor de crítica social: "Choveu, choveu!/ Então a Barroquinha encheu/ Quando chove é um chuá/ Só sai de casa quem sabe nadar/ Na Amaralina tá chuviscando/ Na Barroquinha tem que sair nadando/".
Por um momento, ele retorna para aquele mesmo local, só que apenas alguns anos após a sua chegada de Saubara com 10 anos. Adolescente, conseguiu o emprego de embalador na Bahia Elétrica, uma loja próxima ao antigo Cine Olympia. Em pouco tempo, notou o potencial de faturamento de um mercado promissor na época, a produção de malas. No século XXI, serão fabricadas por indústrias em larga escala, mas na época são feitas de forma artesanal e usadas não só para viagens, mas também para guardar roupas. São grandes baús de madeira que substituem os armários destinados para os mais ricos. Os produtos de Maleiro eram considerados perfeitos e a Bahia passou a reverenciá-lo.
Com a fama, os clientes acorriam para a Avenida Baltazar, que virou em pouco tempo o "Beco do Maleiro". E a freguesia virou de artistas quando ele mudou a produção para instrumentos percussivos. Ali está ele, trabalhando e imaginando formas de ajudar o povo que não teve o mesmo talento formidável. Milagreiro ou não, tornara-se sensível à dor e aos apelos dos próximos. Em agosto de 1975, fará uma viagem para Saubara, levando a afilhada Ivete. Na festa do padroeiro do município, São Domingos Gusmão, receberá homenagens por ter dado dinheiro para a recuperação da igreja. Será uma das últimas demonstrações de respeito que receberá em vida."
Nelson Maleiro procurou a afirmação da raça e trilhou, nos anos 60, caminho diferenciado na mídia em Salvador
Correio da Bahia - 03/02/2005
[Pablo Reis]
Nelson Cruz foi um dos primeiros negros a aparecer em um comercial de TV na Bahia
"Daqui a alguns anos, quando lerem a história, pensarão que se trata de um romance, porque muitos testemunharam, mas pouca gente lembrará que tudo foi rigorosamente verdadeiro. Nelson Maleiro, o negro robusto de quase dois metros, uma fortaleza de carnes e superação, hesita em dar aquela gongada definitiva. De canto de olho, percebe o segundo aceno da produção para ele aplicar o golpe no círculo metálico, mas faz que não vê. Ao menos uma vez, o Gigante Itapoan precisa se dar ao direito de decidir o destino de um dos candidatos a artista. E que seja com aquele rapaz, negro como ele, e nem tão desafinado assim a ponto de merecer o veredicto de que não serve como cantor.
A apresentação vai chegando ao fim e por muito pouco a platéia não ouve os gritos desesperados do pessoal na coxia: "Vai, Maleiro, bate, derruba". Nelson Maleiro, negro íntegro, faz seu trabalho mesmo contra a vontade e com duas pancadas no gongo elimina mais um postulante a ídolo do programa Escada para o sucesso, na incipiente TV Itapoan, inaugurada apenas um ano antes, em 19 de novembro de 1960. Para quem assiste de casa, a cena já é conhecida. Aquele homem vestido como um imponente leão-de-chácara árabe, misto de gênio da lâmpada com seguidor de Ghengis Khan, transmite uma expressão consternada. O sentimento é real e visível: mais um sonho acabou por suas mãos.
Em casa, o menino Ruy, de 14 anos, vê tudo e vai poder confirmar a veracidade do fato quando lhe perguntarem daqui a mais de 40 anos, em 2004. Maleiro, o apelido de Nelson Cruz, consegue fazer com que os espectadores se compadeçam do carrasco e não propriamente da vítima. "Tinha a expressão dócil e a aparência condoída toda vez que era obrigado a eliminar um calouro e a câmera focalizava sua imagem", dirá o cronista Ruy Botelho, uma das testemunhas da história.
Alto, dono de uma grande massa muscular, tórax exposto na tela com um medalhão no peito, braceletes dourados, cinta larga apertando uma calça folgada, bainha bem presa nos tornozelos e um sapato de bico curvo, o Gigante dá um aspecto cinematográfico à atração das noites de domingo. Toda a audiência da Bahia está concentrada na única emissora. Sem dizer uma só palavra, aquele homem vira um ídolo mudo para as crianças. "Você é tão grande quanto o Gigante Itapoan", é uma frase típica para um elogio infantil da época.
O Gigante Itapoan nunca existira como criação artística. Anos antes, Nelson Cruz tinha forjado o Gigante de Bagdá, uma personagem que pela primeira vez deu destaque de protagonista ao negro no Carnaval de Salvador. A adaptação para a TV dá a chance de ele ir além: torna-se o primeiro negro da Bahia a usar a imagem como propaganda na novidade eletrônica.
O apresentador José Jorge Randam lê o texto em off do comercial das molas para carro Banáguia. A narração destaca a resistência do produto, enquanto o Gigante estica, empurra, amassa, aperta o material para provar que nem os músculos infalíveis de um super-homem mouro podem comprometer a integridade do acessório para veículos. "A aparência forte impressionava, mesmo sem falar, ele conseguia transmitir uma mensagem muito importante", confirmará Randam, que substitui o titular Nilton Paes, em Escada para o sucesso.
As gongadas distinguem quem desce a rampa do fracasso e são tudo o que os calouros não esperam acontecer. E esta é a irônica situação sobre a qual Nelson Cruz não se cansa de refletir. Ali, a ação dele determina quem pode persistir na esperança ou quem vai se resignar a um destino menos promissor. Ele mesmo, oras, tinha recebido tantas gongadas da vida, mas jamais deixara de seguir o seu caminho obstinado, de subir em uma trajetória de realizações.
Filho de pescador em Saubara, a 120km de Salvador, nascido em 20 de janeiro de 1909, Nelson Cruz tinha chegado à capital com 10 anos. Nela moraria os 63 anos seguintes na Barroquinha. Em seu reduto, na zona da cidade destinada à população de classe baixa, conseguiu se transformar em um ícone da negritude. Até aquele momento em que experimenta a glória na televisão, já conseguira sair de empacotador em uma loja de materiais elétricos para principal carnavalesco na segunda metade do século XX, virara uma referência estadual na fabricação de malas (daí o apelido que levaria até o fim da vida) e também o artesão mais procurado pelos músicos baianos que buscavam instrumentos de percussão de qualidade.
Herói popular sem insígnia, mesmo sem ter concluído os estudos de primeiro grau, conseguirá se destacar como designer, engenheiro, ator, agitador cultural, músico, artesão, líder comunitário. O destino bucólico em Saubara, com seus menos de 10 mil habitantes, seria muito pouco para alguém que queria se afirmar como protagonista urbano na metrópole.
"Que a vida de Nelson Cruz foi um mosaico de símbolos, isso é um fato. Seja como o Maleiro, ou como o Gigante de Bagdá, a realidade é que Nelson fez de sua vida uma verdadeira alegoria, não se limitando àquelas a que deu vida com os seus carros alegóricos", ratificará o bacharel em direito e professor de letras Leonardo Lima Mendes na monografia Nelson Maleiro: o "gigante" das mil e uma criações, de 2003.
Com a força guerreira de um Antônio Balduíno, a vontade de enobrecer a raça de um Pedro Arcanjo e o pendor para o mistério de um Jubiabá, Nelson Cruz, já neste momento de sucesso televisivo, poderia ter virado personagem de Jorge Amado, tanto pelos cenários típicos da Velha Bahia por onde transitou, quanto por sua trajetória de pioneirismo e coragem. O homem que morrerá em 9 de junho de 1982, aos 73 anos, vítima de um câncer na próstata, não terá um livro em homenagem. Pai de Nelson Cruz Filho, Nivaldo Albergaria Cruz e Nolair Albergaria Cruz (do primeiro casamento) e Nilton Paixão Cruz e Milton Conceição Cruz (da união com Zilda Santos), ele ficará como nome de uma rua na Liberdade, onde os moradores nem saberão quem ele foi.
Sobreviverá na memória das pessoas que assistiram à atração na TV, ou que não esquecem dos antigos e saudosos carnavais. Resistirá na perseverança de um grupo de amigos que vai insistir em não deixar seu legado morrer. Entre uma e outra recordação de gente próxima, aparecerá em lembranças inusitadas como na confissão de influência de Carlinhos Brown para conceber o grupo Os Zárabe. "Vem muito de ter conhecido Nelson Maleiro, um cavaleiro de Bagdá que fazia afoxé com índios. Ele usava sapatos de bico tipo Aladim", declarará Brown, na Folha de S. Paulo de 6 de fevereiro de 2001. Ficará em um trecho da música Filhos de Gandhi, de Gilberto Gil: "Mercador/ Cavaleiro de Bagdá/ Oh, filhos de oba/Manda descer pra ver/Filhos de Gandhi".
Sem entrar na literatura de Jorge Amado, vai sobreviver em alguns relatos pelos becos e vielas da Baixa dos Sapateiros. Grande em sua aparência, maior ainda nas realizações que ousou colocar sob a autoria de um homem do povo."
"Daqui a alguns anos, quando lerem a história, pensarão que se trata de um romance, porque muitos testemunharam, mas pouca gente lembrará que tudo foi rigorosamente verdadeiro. Nelson Maleiro, o negro robusto de quase dois metros, uma fortaleza de carnes e superação, hesita em dar aquela gongada definitiva. De canto de olho, percebe o segundo aceno da produção para ele aplicar o golpe no círculo metálico, mas faz que não vê. Ao menos uma vez, o Gigante Itapoan precisa se dar ao direito de decidir o destino de um dos candidatos a artista. E que seja com aquele rapaz, negro como ele, e nem tão desafinado assim a ponto de merecer o veredicto de que não serve como cantor.
A apresentação vai chegando ao fim e por muito pouco a platéia não ouve os gritos desesperados do pessoal na coxia: "Vai, Maleiro, bate, derruba". Nelson Maleiro, negro íntegro, faz seu trabalho mesmo contra a vontade e com duas pancadas no gongo elimina mais um postulante a ídolo do programa Escada para o sucesso, na incipiente TV Itapoan, inaugurada apenas um ano antes, em 19 de novembro de 1960. Para quem assiste de casa, a cena já é conhecida. Aquele homem vestido como um imponente leão-de-chácara árabe, misto de gênio da lâmpada com seguidor de Ghengis Khan, transmite uma expressão consternada. O sentimento é real e visível: mais um sonho acabou por suas mãos.
Em casa, o menino Ruy, de 14 anos, vê tudo e vai poder confirmar a veracidade do fato quando lhe perguntarem daqui a mais de 40 anos, em 2004. Maleiro, o apelido de Nelson Cruz, consegue fazer com que os espectadores se compadeçam do carrasco e não propriamente da vítima. "Tinha a expressão dócil e a aparência condoída toda vez que era obrigado a eliminar um calouro e a câmera focalizava sua imagem", dirá o cronista Ruy Botelho, uma das testemunhas da história.
Alto, dono de uma grande massa muscular, tórax exposto na tela com um medalhão no peito, braceletes dourados, cinta larga apertando uma calça folgada, bainha bem presa nos tornozelos e um sapato de bico curvo, o Gigante dá um aspecto cinematográfico à atração das noites de domingo. Toda a audiência da Bahia está concentrada na única emissora. Sem dizer uma só palavra, aquele homem vira um ídolo mudo para as crianças. "Você é tão grande quanto o Gigante Itapoan", é uma frase típica para um elogio infantil da época.
O Gigante Itapoan nunca existira como criação artística. Anos antes, Nelson Cruz tinha forjado o Gigante de Bagdá, uma personagem que pela primeira vez deu destaque de protagonista ao negro no Carnaval de Salvador. A adaptação para a TV dá a chance de ele ir além: torna-se o primeiro negro da Bahia a usar a imagem como propaganda na novidade eletrônica.
O apresentador José Jorge Randam lê o texto em off do comercial das molas para carro Banáguia. A narração destaca a resistência do produto, enquanto o Gigante estica, empurra, amassa, aperta o material para provar que nem os músculos infalíveis de um super-homem mouro podem comprometer a integridade do acessório para veículos. "A aparência forte impressionava, mesmo sem falar, ele conseguia transmitir uma mensagem muito importante", confirmará Randam, que substitui o titular Nilton Paes, em Escada para o sucesso.
As gongadas distinguem quem desce a rampa do fracasso e são tudo o que os calouros não esperam acontecer. E esta é a irônica situação sobre a qual Nelson Cruz não se cansa de refletir. Ali, a ação dele determina quem pode persistir na esperança ou quem vai se resignar a um destino menos promissor. Ele mesmo, oras, tinha recebido tantas gongadas da vida, mas jamais deixara de seguir o seu caminho obstinado, de subir em uma trajetória de realizações.
Filho de pescador em Saubara, a 120km de Salvador, nascido em 20 de janeiro de 1909, Nelson Cruz tinha chegado à capital com 10 anos. Nela moraria os 63 anos seguintes na Barroquinha. Em seu reduto, na zona da cidade destinada à população de classe baixa, conseguiu se transformar em um ícone da negritude. Até aquele momento em que experimenta a glória na televisão, já conseguira sair de empacotador em uma loja de materiais elétricos para principal carnavalesco na segunda metade do século XX, virara uma referência estadual na fabricação de malas (daí o apelido que levaria até o fim da vida) e também o artesão mais procurado pelos músicos baianos que buscavam instrumentos de percussão de qualidade.
Herói popular sem insígnia, mesmo sem ter concluído os estudos de primeiro grau, conseguirá se destacar como designer, engenheiro, ator, agitador cultural, músico, artesão, líder comunitário. O destino bucólico em Saubara, com seus menos de 10 mil habitantes, seria muito pouco para alguém que queria se afirmar como protagonista urbano na metrópole.
"Que a vida de Nelson Cruz foi um mosaico de símbolos, isso é um fato. Seja como o Maleiro, ou como o Gigante de Bagdá, a realidade é que Nelson fez de sua vida uma verdadeira alegoria, não se limitando àquelas a que deu vida com os seus carros alegóricos", ratificará o bacharel em direito e professor de letras Leonardo Lima Mendes na monografia Nelson Maleiro: o "gigante" das mil e uma criações, de 2003.
Com a força guerreira de um Antônio Balduíno, a vontade de enobrecer a raça de um Pedro Arcanjo e o pendor para o mistério de um Jubiabá, Nelson Cruz, já neste momento de sucesso televisivo, poderia ter virado personagem de Jorge Amado, tanto pelos cenários típicos da Velha Bahia por onde transitou, quanto por sua trajetória de pioneirismo e coragem. O homem que morrerá em 9 de junho de 1982, aos 73 anos, vítima de um câncer na próstata, não terá um livro em homenagem. Pai de Nelson Cruz Filho, Nivaldo Albergaria Cruz e Nolair Albergaria Cruz (do primeiro casamento) e Nilton Paixão Cruz e Milton Conceição Cruz (da união com Zilda Santos), ele ficará como nome de uma rua na Liberdade, onde os moradores nem saberão quem ele foi.
Sobreviverá na memória das pessoas que assistiram à atração na TV, ou que não esquecem dos antigos e saudosos carnavais. Resistirá na perseverança de um grupo de amigos que vai insistir em não deixar seu legado morrer. Entre uma e outra recordação de gente próxima, aparecerá em lembranças inusitadas como na confissão de influência de Carlinhos Brown para conceber o grupo Os Zárabe. "Vem muito de ter conhecido Nelson Maleiro, um cavaleiro de Bagdá que fazia afoxé com índios. Ele usava sapatos de bico tipo Aladim", declarará Brown, na Folha de S. Paulo de 6 de fevereiro de 2001. Ficará em um trecho da música Filhos de Gandhi, de Gilberto Gil: "Mercador/ Cavaleiro de Bagdá/ Oh, filhos de oba/Manda descer pra ver/Filhos de Gandhi".
Sem entrar na literatura de Jorge Amado, vai sobreviver em alguns relatos pelos becos e vielas da Baixa dos Sapateiros. Grande em sua aparência, maior ainda nas realizações que ousou colocar sob a autoria de um homem do povo."
A Festa de Momo dá a Maleiro o território ideal para criações à frente do seu tempo
Correio da Bahia - 03/02/2005
[Pablo Reis]
O fogo tomou conta do corpo do dragão, consumindo o que era a invenção encantadora de Carnaval
"É noite de domingo de Carnaval e a Ladeira da Praça está praticamente deserta em comparação com a efervescência momesca nas proximidades do centro. Os poucos passantes observam com muita admiração a descida de um pequeno trator puxando um lagarto grande e brilhoso. Parece um dragão, mas é um pouco difícil de entender, no ano de 1965, como alguém conseguiu construir, de forma absolutamente artesanal, um dragão que se locomove pelas ruas de Salvador.
A confirmação de que é um dragão mesmo se dá quando uma pequena labareda ilumina a boca do animal prateado. Um jovem andando com uma garota que acaba de conhecer na festa interrompe o passo e chama a atenção da parceira. Maleiro, puxando seu dragão imponente, se enche de orgulho mais uma vez. Durante todo o cortejo, as reações tinham sido, invariavelmente, daquele jeito. O público admirava-se com a obra que ficara fiel a um ano de trabalho, da idéia inicial ao último rastilho de pólvora colocado na boca da fera. Mais do que nunca, a personagem do Gigante de Bagdá está solidificada no Carnaval, sempre associada a vitórias.
Pensando em vitórias, Maleiro não consegue deixar de prever mais um título do concurso destinado aos pequenos blocos. Afinal, a alegoria estava perfeita e surpreendente, consagrando uma criatividade que se repetia a cada ano. Logo ele, que não tivera educação formal praticamente nenhuma, conseguia ser arquiteto de maravilhas de papelão, engenheiro de alegrias, designer de ilusões em papel machê e promotor da folia.
"Ele levava quase o ano todo confeccionando os carros de uma forma bem artesanal", recorda o professor universitário de física Sérgio Borges, que estudava no antigo Colégio São Salvador, vizinho do barracão de Maleiro, na Barroquinha. Quando menino, Borges se juntava a uma pequena legião de colaboradores mirins, que garantiam uma boa quantidade de matéria-prima para o trabalho do artista. Pelas imediações do Centro Histórico, a gurizada saía recolhendo todo o tipo de material que servisse para o gênio criativo de Maleiro: madeira, plástico, isopor. Um artigo valioso era o papel laminado das carteiras de cigarro, que era pedido pela gurizada a todos os fumantes para garantir o brilho das alegorias. "Maleiro gostava de fazer coisas prateadas, que pudessem se destacar".
Reino da fantasia
Destacar-se, sair do anonimato foi um movimento que ia além do benefício a si próprio. Em uma época em que os blocos de negros, como o Vai Levando, o Mercadores de Bagdá, o Filhos de Gandhy, Filhos do Mar, Filhos do Fogo, ficavam fora do circuito dos chamados grandes blocos, ele dera um outro tipo de visibilidade para a raça. "A negrada não podia subir a avenida. Ficavam ali pela Baixa dos Sapateiros", pondera o historiador Jaime Sodré. "Maleiro buscou essa negritude do oriente para mostrar que era possível ocupar o outro espaço. E ele fez mais, colocando o aspecto que o Carnaval necessitava de fantasia. Era esse o sentido de incorporar uma espécie de mágico capaz de transformar a vida dura que ele vivia em uma coisa fantástica", analisa, empolgado, Sodré.
Maleiro refaz mentalmente todo o percurso naquele dia, começando pelo desfile iniciado na Praça da Sé, onde a comissão julgadora ficara visivelmente surpreendida. Na seqüência, no palanque do Campo Grande, os jurados mais uma vez se mostraram encantados com a realização. Só que o que mais agradara ao gênio da raça era a reação do povo. Toda vez que do alto do carro o Gigante dava sua gongada e jogava um punhado de pólvora para criar a baforada em chamas do dragão, a multidão delirava.
O retorno pela Avenida Sete de Setembro fora igualmente efusivo até encontrar a relativa tranqüilidade na ladeira, ao fim do primeiro dia de folia. Exausto, mas preservando a alegria íntima, quase infantil, de um sucesso pessoal, ele nem percebe que o vento muda rápido de direção para uma surpresa incômoda.
A pequena chama inocente, uma língua de fogo travessa desprendida na brisa, sai da boca do animal para a cabeça e daí se transforma em um brilho destrutivo e incendiário. O fogo toma conta do corpo do dragão, consumindo o que era a invenção encantadora de Carnaval. A cauda de serpente, as asas, são rapidamente abatidas diante de um atônito Maleiro, tentando debelar o incêndio. O Gigante não consegue crescer frente ao ardor das chamas. A ironia é que bem próximo ao Corpo de Bombeiros, o artista vê, sua criatura fenecendo naquela bola ardente iluminando a noite.
Pouca coisa há a ser feita, a não ser recolher a estrutura de sustentação do carro, completamente carbonizada. Maleiro volta derrotado pelo fogo traiçoeiro do dragão como uma espécie de atração às avessas. Todos os vizinhos vão observar aquele homem grande, sentado, inteiramente mudo e com a aparência de quem está com o pensamento perdido em alguma galáxia distante. De repente, uma única frase: "Eu tenho compromisso com o povo. O povo me espera".
Baleias, belzebus e elefantes
Ele se recolhe para a oficina para mais um intervalo de reclusão do já conhecido processo de criação solitária. Dessa vez, praticamente se interna na noite de domingo provocando a expectativa sobre o que seria feito em tão pouco tempo para resolver o problema. "A vida oferecia a Nelson mais um acontecimento, este agora inusitado. Restava a ele, como artista, posicionar-se diante do imprevisível. O que fazer?, eis a pergunta que a vida colocava em suas mãos, tão afeitas ao invento", refletiria o bacharel em direito e professor de letras, Leonardo Mendes, na monografia Nelson Maleiro: o "gigante" das mil e uma criações, de 2003.
A inventividade produzira em carnavais passados tubarões e baleias, gênios da lâmpada e aladins e nos seguintes (até 1979, com interrupções em 75 e 76) belzebus acorrentados e elefantes. As alegorias eram esperadas com grande expectativa e, mesmo sendo feitas com recursos modestos, sempre chamavam a atenção. Camelos, gigantescos tubarões, dragões que soltavam fogo pelas ventas, nada era impossível para o "Gigante", recordaria, em 2004, o carnavalesco e músico Waltinho Queiroz, um dos fundadores e espécie de guru intelectual do bloco Jacu. Entre as criações que resistirão, os carros alegóricos que o Filhos de Gandhy colocará na avenida em 2005 (o camelo e o elefante) guardarão a assinatura do mestre, preservados por mais de 30 anos com algumas poucas reformas.
"Maleiro era a personificação do Carnaval do próprio povo. Hoje, não somos mais carnavalescos, somos espectadores de shows da melhor qualidade, mas que não fomentam uma folia participativa", analisaria o jornalista Ruy Botelho, autor de dois livros com crônicas sobre a Velha Bahia. "Na época, o espírito de Carnaval impregnava a todos, cada cidadão era o Carnaval. Maleiro permitia ao pessoal da comunidade sair no bloco dele e também dava o espetáculo de suas alegorias", sustentaria Botelho. "Não seria exagero pedir que um artista desse nível nomeasse pelo menos um circuito de Carnaval", cobraria Queiroz.
Depois do domingo triste, o povo espera a solução de Maleiro para a terça-feira. Esperam por um carro remodelado, uma criação em tempo recorde capaz de suprir o vazio acinzentado de um dragão reduzido a pó pelas próprias chamas. O artista recorre a um pouco de tinta, pincel e uma placa de ferro para usar a simplicidade que geralmente floresce nas criações geniais. E produz o seu menos elaborado projeto de Carnaval, nada mais que uma inscrição com as palavras: "Os maus por si se destroem".
Coloca a mensagem sobre o carro e desfila naturalmente, recebendo a atenção e o respeito do público. "Para o artista, o espetáculo não podia parar, não só por conta da sua vontade criativa, mas também porque sabia que o público tradicionalmente o aguardava. Assim, retornou na terça-feira à avenida, exibindo aos foliões baianos a sua mais nova criação", concluiria Leonardo Mendes na monografia sobre a vida de Maleiro.
O Gigante subjuga mais uma adversidade com o recado de que é preciso muito mais que uma simples travessura da natureza para conseguir vencê-lo. "Além de tudo, era um filósofo, sempre com uma resposta para as coisas. Neste caso, uma verdadeira lição afirmativa", considera Sodré. O Carnaval termina e em algumas semanas haverá a comprovação de que o Cavalheiros mais uma vez foi o campeão do concurso de pequenos blocos. Na Quarta-Feira de Cinzas, o momento é de recolher adereços e equipamentos e fazer um balanço da participação. Mas todos em volta, vizinhos, parceiros, foliões, querem saber o que ele planeja de inovador para o ano seguinte. Lápis preso na orelha esquerda, dedo indicador martelando no lado direito da cabeça, Maleiro divide apenas consigo mesmo o sucesso da próxima edição: "Tenham calma que está tudo guardado aqui". Na mente do criador, repousam as criaturas prontas para a nova missão em algum ponto da avenida."
O fogo tomou conta do corpo do dragão, consumindo o que era a invenção encantadora de Carnaval
"É noite de domingo de Carnaval e a Ladeira da Praça está praticamente deserta em comparação com a efervescência momesca nas proximidades do centro. Os poucos passantes observam com muita admiração a descida de um pequeno trator puxando um lagarto grande e brilhoso. Parece um dragão, mas é um pouco difícil de entender, no ano de 1965, como alguém conseguiu construir, de forma absolutamente artesanal, um dragão que se locomove pelas ruas de Salvador.
A confirmação de que é um dragão mesmo se dá quando uma pequena labareda ilumina a boca do animal prateado. Um jovem andando com uma garota que acaba de conhecer na festa interrompe o passo e chama a atenção da parceira. Maleiro, puxando seu dragão imponente, se enche de orgulho mais uma vez. Durante todo o cortejo, as reações tinham sido, invariavelmente, daquele jeito. O público admirava-se com a obra que ficara fiel a um ano de trabalho, da idéia inicial ao último rastilho de pólvora colocado na boca da fera. Mais do que nunca, a personagem do Gigante de Bagdá está solidificada no Carnaval, sempre associada a vitórias.
Pensando em vitórias, Maleiro não consegue deixar de prever mais um título do concurso destinado aos pequenos blocos. Afinal, a alegoria estava perfeita e surpreendente, consagrando uma criatividade que se repetia a cada ano. Logo ele, que não tivera educação formal praticamente nenhuma, conseguia ser arquiteto de maravilhas de papelão, engenheiro de alegrias, designer de ilusões em papel machê e promotor da folia.
"Ele levava quase o ano todo confeccionando os carros de uma forma bem artesanal", recorda o professor universitário de física Sérgio Borges, que estudava no antigo Colégio São Salvador, vizinho do barracão de Maleiro, na Barroquinha. Quando menino, Borges se juntava a uma pequena legião de colaboradores mirins, que garantiam uma boa quantidade de matéria-prima para o trabalho do artista. Pelas imediações do Centro Histórico, a gurizada saía recolhendo todo o tipo de material que servisse para o gênio criativo de Maleiro: madeira, plástico, isopor. Um artigo valioso era o papel laminado das carteiras de cigarro, que era pedido pela gurizada a todos os fumantes para garantir o brilho das alegorias. "Maleiro gostava de fazer coisas prateadas, que pudessem se destacar".
Reino da fantasia
Destacar-se, sair do anonimato foi um movimento que ia além do benefício a si próprio. Em uma época em que os blocos de negros, como o Vai Levando, o Mercadores de Bagdá, o Filhos de Gandhy, Filhos do Mar, Filhos do Fogo, ficavam fora do circuito dos chamados grandes blocos, ele dera um outro tipo de visibilidade para a raça. "A negrada não podia subir a avenida. Ficavam ali pela Baixa dos Sapateiros", pondera o historiador Jaime Sodré. "Maleiro buscou essa negritude do oriente para mostrar que era possível ocupar o outro espaço. E ele fez mais, colocando o aspecto que o Carnaval necessitava de fantasia. Era esse o sentido de incorporar uma espécie de mágico capaz de transformar a vida dura que ele vivia em uma coisa fantástica", analisa, empolgado, Sodré.
Maleiro refaz mentalmente todo o percurso naquele dia, começando pelo desfile iniciado na Praça da Sé, onde a comissão julgadora ficara visivelmente surpreendida. Na seqüência, no palanque do Campo Grande, os jurados mais uma vez se mostraram encantados com a realização. Só que o que mais agradara ao gênio da raça era a reação do povo. Toda vez que do alto do carro o Gigante dava sua gongada e jogava um punhado de pólvora para criar a baforada em chamas do dragão, a multidão delirava.
O retorno pela Avenida Sete de Setembro fora igualmente efusivo até encontrar a relativa tranqüilidade na ladeira, ao fim do primeiro dia de folia. Exausto, mas preservando a alegria íntima, quase infantil, de um sucesso pessoal, ele nem percebe que o vento muda rápido de direção para uma surpresa incômoda.
A pequena chama inocente, uma língua de fogo travessa desprendida na brisa, sai da boca do animal para a cabeça e daí se transforma em um brilho destrutivo e incendiário. O fogo toma conta do corpo do dragão, consumindo o que era a invenção encantadora de Carnaval. A cauda de serpente, as asas, são rapidamente abatidas diante de um atônito Maleiro, tentando debelar o incêndio. O Gigante não consegue crescer frente ao ardor das chamas. A ironia é que bem próximo ao Corpo de Bombeiros, o artista vê, sua criatura fenecendo naquela bola ardente iluminando a noite.
Pouca coisa há a ser feita, a não ser recolher a estrutura de sustentação do carro, completamente carbonizada. Maleiro volta derrotado pelo fogo traiçoeiro do dragão como uma espécie de atração às avessas. Todos os vizinhos vão observar aquele homem grande, sentado, inteiramente mudo e com a aparência de quem está com o pensamento perdido em alguma galáxia distante. De repente, uma única frase: "Eu tenho compromisso com o povo. O povo me espera".
Baleias, belzebus e elefantes
Ele se recolhe para a oficina para mais um intervalo de reclusão do já conhecido processo de criação solitária. Dessa vez, praticamente se interna na noite de domingo provocando a expectativa sobre o que seria feito em tão pouco tempo para resolver o problema. "A vida oferecia a Nelson mais um acontecimento, este agora inusitado. Restava a ele, como artista, posicionar-se diante do imprevisível. O que fazer?, eis a pergunta que a vida colocava em suas mãos, tão afeitas ao invento", refletiria o bacharel em direito e professor de letras, Leonardo Mendes, na monografia Nelson Maleiro: o "gigante" das mil e uma criações, de 2003.
A inventividade produzira em carnavais passados tubarões e baleias, gênios da lâmpada e aladins e nos seguintes (até 1979, com interrupções em 75 e 76) belzebus acorrentados e elefantes. As alegorias eram esperadas com grande expectativa e, mesmo sendo feitas com recursos modestos, sempre chamavam a atenção. Camelos, gigantescos tubarões, dragões que soltavam fogo pelas ventas, nada era impossível para o "Gigante", recordaria, em 2004, o carnavalesco e músico Waltinho Queiroz, um dos fundadores e espécie de guru intelectual do bloco Jacu. Entre as criações que resistirão, os carros alegóricos que o Filhos de Gandhy colocará na avenida em 2005 (o camelo e o elefante) guardarão a assinatura do mestre, preservados por mais de 30 anos com algumas poucas reformas.
"Maleiro era a personificação do Carnaval do próprio povo. Hoje, não somos mais carnavalescos, somos espectadores de shows da melhor qualidade, mas que não fomentam uma folia participativa", analisaria o jornalista Ruy Botelho, autor de dois livros com crônicas sobre a Velha Bahia. "Na época, o espírito de Carnaval impregnava a todos, cada cidadão era o Carnaval. Maleiro permitia ao pessoal da comunidade sair no bloco dele e também dava o espetáculo de suas alegorias", sustentaria Botelho. "Não seria exagero pedir que um artista desse nível nomeasse pelo menos um circuito de Carnaval", cobraria Queiroz.
Depois do domingo triste, o povo espera a solução de Maleiro para a terça-feira. Esperam por um carro remodelado, uma criação em tempo recorde capaz de suprir o vazio acinzentado de um dragão reduzido a pó pelas próprias chamas. O artista recorre a um pouco de tinta, pincel e uma placa de ferro para usar a simplicidade que geralmente floresce nas criações geniais. E produz o seu menos elaborado projeto de Carnaval, nada mais que uma inscrição com as palavras: "Os maus por si se destroem".
Coloca a mensagem sobre o carro e desfila naturalmente, recebendo a atenção e o respeito do público. "Para o artista, o espetáculo não podia parar, não só por conta da sua vontade criativa, mas também porque sabia que o público tradicionalmente o aguardava. Assim, retornou na terça-feira à avenida, exibindo aos foliões baianos a sua mais nova criação", concluiria Leonardo Mendes na monografia sobre a vida de Maleiro.
O Gigante subjuga mais uma adversidade com o recado de que é preciso muito mais que uma simples travessura da natureza para conseguir vencê-lo. "Além de tudo, era um filósofo, sempre com uma resposta para as coisas. Neste caso, uma verdadeira lição afirmativa", considera Sodré. O Carnaval termina e em algumas semanas haverá a comprovação de que o Cavalheiros mais uma vez foi o campeão do concurso de pequenos blocos. Na Quarta-Feira de Cinzas, o momento é de recolher adereços e equipamentos e fazer um balanço da participação. Mas todos em volta, vizinhos, parceiros, foliões, querem saber o que ele planeja de inovador para o ano seguinte. Lápis preso na orelha esquerda, dedo indicador martelando no lado direito da cabeça, Maleiro divide apenas consigo mesmo o sucesso da próxima edição: "Tenham calma que está tudo guardado aqui". Na mente do criador, repousam as criaturas prontas para a nova missão em algum ponto da avenida."
"A morte e a morte de Maleiro
Gigante ficou pequeno na memória coletiva, mas grupo de amigos luta para preservar seu legado.
Correio da Bahia - 03/02/2005
[Pablo Reis]
"Na parede externa da casa de Ananelza Fernandes de Santana, que mora há 29 anos no mesmo lugar, está pregada a placa indicando Rua Nelson Maleiro. Ela não faz idéia de quem seja o homenageado. "Sei quem é outro Nelson, o Barros, que é meu pai", devolve a cabeleireira. Com curiosidade despertada, Ananelza convida a uma passada no vizinho seu Zé, dono de padaria. Com quase 60 anos de idade e mais de 30 morando no Jardim São Cristóvão, na Liberdade, certamente ele saberá de quem se trata. "Eu nunca tinha ouvido falar nele, não. Mas essa pesquisa é pra quê mesmo?", indaga o experiente comerciante.
Encabulada, Ananelza tenta desestimular a busca entre algum morador, das cerca de 40 casas, que conheça um pouco da biografia do patrono daquela rua. "Boa sorte, mas acho que você não vai conseguir muita coisa, não". Ladeira abaixo, em um tabuleiro sobre o qual disputa-se um silencioso jogo de baralho, Francisco dos Santos Melo franze a testa e meneia a cabeça para mostrar que ignora o personagem, mas não a bela canastra de copas que esconde nas mãos. Assistindo à partida, o desempregado Raimundo Costa arrisca, timidamente: "Acho que ouvi uma reportagem no rádio dizendo que era alguém do Carnaval". Depois, Costa responde que mora na casa 139, mas questiona o motivo da pergunta sobre o número da residência. "Você quer mandar um prêmio por eu ter acertado?"
O prêmio não existe, só que, pela aridez do conhecimento geral, seria até merecido. No logradouro de Salvador sob o número 5.479, anteriormente Rua E do Jardim São Cristóvão, rebatizado em 1996 por decreto municipal, pouca gente sabe quem foi uma das figuras mais importantes do Carnaval. No bairro popular da Liberdade, o estilo de vida é bem parecido com o experimentado por Nelson Cruz na Barroquinha das décadas de 50 e 60: muitas moradias em pouco espaço, vizinhança conhecida, diversas demandas sociais.
No ponto da calçada onde antes havia uma placa alusiva ao patrono da rua, resta apenas a pedra fundamental. Em frente, o Centro Educacional Francisco de Assis Melo guarda duas páginas de uma biografia resumida de Maleiro, distribuída na ocasião da cerimônia. "Parece que ele era uma pessoa do fogo, dos tambores", esforça-se a pedagoga Márcia de Ceutas Melo, dona da escola e principal responsável, na comunidade, pela divulgação do nome.
Batalha pela memória
O registro sobre a vida e a própria batalha para que Nelson Maleiro nomeasse uma rua de Salvador foram feitos pela Associação de Amigos de Nelson Maleiro, criada em 96 pela afilhada Ivete Lima Cardoso e o irmão dela, Ivan Lima. O grupo formado por dez integrantes detém o espólio cultural do carnavalesco depois da segunda mulher dele, Zilda Santos (falecida em 2003), ter doado todas as fotos e os poucos objetos que restavam de sua coleção.
A ata lavrada em 2003 oficializou o trabalho abnegado de pessoas que conviveram intimamente com Nelson Cruz. "Passamos 14 anos esperando que alguém fizesse justiça à memória dele", reclama Ivan Lima, sobre o ídolo, morto em 1982. "Nelson Maleiro é o negro mais importante do Carnaval baiano", afirma, categórico. A forma empolgada, veemente e sem ressalvas com que falam sobre a personagem dá até uma conotação messiânica. "Mas não é fanatismo, não, o que sentimos", nega Ivete. "É uma admiração muito profunda por um homem de grande caráter".
A rua em homenagem ao artista só foi batizada em 1996 depois de muita insistência da dupla, acatada por um projeto de lei do então vereador Germano Tabacof. Na moção para nomear o logradouro, o vereador fez a homenagem: "Dar o nome de Nelson Maleiro a uma rua da nossa Salvador é resgatar uma dívida para com uma figura popular `coração maior do mundo", homem de bem, correto pai de família e, sobretudo, um autêntico fazedor de alegria"
Além desta iniciativa, apenas uma referência ao Gigante de Bagdá feita pelo desfile do Ilê Aiyê no Carnaval de 1996, sob o tema Perólas negras do saber. Manter viva a memória de um artista independente, representante das classes menos prestigiadas parece ser mais difícil do que enfrentar o próprio dragão de São Jorge. O Centro de Estudos Afro-Orientais, órgão suplementar da Universidade Federal da Bahia, que simboliza as duas inspirações culturais mais marcantes do trabalho de Maleiro (a África e o Oriente), é um exemplo de como apenas duas décadas de distância entre a morte e a atualidade podem levar a um esquecimento quase completo. "Estou ouvindo falar dele pela primeira vez", revela o doutor em antropologia social e diretor do Ceao, Jocélio Teles. "Mas é capaz de alguém aqui ter uma informação, só que todos estão em recesso", complementa.
O pesquisador Reinaldo Santana, também chamado Landê Onawane, uma autoridade em personalidades negras de destaque, não possui maiores detalhes biográficos. "Sei que ele era um dos homens mais requisitados para fazer atabaque. Foi um dos fundadores do Mercadores de Bagdá", sugere Landê.
Sepulcro da alegria
Sintoma da doença social pelo efêmero, a segunda morte de Maleiro consegue sepultar a premissa de uma alegria atemporal. "Maleiro foi um nome poderoso como Dodô e Osmar. Só que eles tiveram uma visibilidade maior. O Carnaval de Salvador deve um circuito de Nelson Maleiro", reforça o compositor Walter Queiroz. "Compararia Nelson a outras figuras, como Mestre Bimba, Mestre Pastinha, Waldemar Santana (o Leopardo Negro), os mais puros representantes da cultura popular nativa que a Bahia deixa se perder na memória. Nelson Maleiro deveria ser cultuado e reverenciado, pelo menos todas as vezes que começasse o Carnaval", critica o cronista Ruy Botelho.
O historiador Jaime Sodré, que considera "a dívida muito grande e a obra de Maleiro de extrema importância", pensa em inaugurar um memorial no antigo local onde era a oficina. Hoje, não passa de uma quitanda vendendo utensílios kitsch para aniversários. No imóvel de número 28 da Baixa dos Sapateiros, dona Emília toca seu comércio sem saber muito do antigo inquilino daquele lugar. As informações são dadas pelo vendedor ambulante Claudionor Vieira, o Macarrão da Barroquinha. Com o físico franzino que sugere o apelido, ele trabalha na área desde 1972. "Maleiro fazia aqueles bichos bonitos para sair no Carnaval", comenta, relembrando os carros alegóricos. "Não era um homem rico, era uma pessoa humilde, mas muito prestativa. Sempre ajudava as pessoas".
Faltam dois dias para o Reveillon de 1982. Nelson Cruz sai da casa da segunda mulher, Zilda Santos, no bairro de Castelo Branco, pensando em voltar para o trabalho na oficina. No ponto de ônibus, sente uma tontura, mas não pede ajuda a ninguém. Tomba ali mesmo, vítima de um derrame cerebral. Vai sobreviver por mais seis meses sem conseguir dizer uma só palavra. Internado no hospital do Exército, na Ladeira dos Galés, vive um período na companhia praticamente exclusiva da mulher. "Ela não deixou ele morrer à míngua", elogiará a afilhada Ivete. Depois do derrame, Maleiro se afasta das atividades culturais. Nas vésperas do Carnaval do ano seguinte, o Jornal da Bahia dedica uma reportagem à ausência do criador dos mais inovadores. "Sem Gigante, festa não é tão brilhante" é o texto publicado em 10 de fevereiro de 1981.
Um câncer de próstata fora diagnosticado em junho de 1980, mas ele recusara o tratamento. A madrugada de 9 de junho de 1982 reserva para Maleiro a viagem longa, a partida da estação vida. Em casa, pela manhã, se preparando para ligar para uma rádio e participar de um programa de perguntas sobre a Copa de 82 (cujo início será em quatro dias), Ivan Lima recebe a notícia com a dor de quem não pôde se despedir de um viajante querido. O choque tira dele a reação de ligar para a rádio, não mais para concorrer em uma gincana de prêmios, mas para informar o sepultamento de um ídolo momesco.
Sem saber da morte, a cidade não se mobiliza para o enterro, uma cerimônia no Campo Santo com a presença de menos de 50 pessoas. Em Saubara, foi filho de pescador, na capital se metamorfoseou em artesão abençoado, criador contumaz, atração de carnaval, artista de TV. Na morte, virou mito esquecido, redentor silencioso da raça, capítulo passado de boca em boca nas ruas da Velha Bahia. É bem capaz de estar nas entrelinhas de algum romance de Jorge Amado do mesmo jeito como viveu, sem fazer alarde, só aguardando o momento certo de ser notado."
Encabulada, Ananelza tenta desestimular a busca entre algum morador, das cerca de 40 casas, que conheça um pouco da biografia do patrono daquela rua. "Boa sorte, mas acho que você não vai conseguir muita coisa, não". Ladeira abaixo, em um tabuleiro sobre o qual disputa-se um silencioso jogo de baralho, Francisco dos Santos Melo franze a testa e meneia a cabeça para mostrar que ignora o personagem, mas não a bela canastra de copas que esconde nas mãos. Assistindo à partida, o desempregado Raimundo Costa arrisca, timidamente: "Acho que ouvi uma reportagem no rádio dizendo que era alguém do Carnaval". Depois, Costa responde que mora na casa 139, mas questiona o motivo da pergunta sobre o número da residência. "Você quer mandar um prêmio por eu ter acertado?"
O prêmio não existe, só que, pela aridez do conhecimento geral, seria até merecido. No logradouro de Salvador sob o número 5.479, anteriormente Rua E do Jardim São Cristóvão, rebatizado em 1996 por decreto municipal, pouca gente sabe quem foi uma das figuras mais importantes do Carnaval. No bairro popular da Liberdade, o estilo de vida é bem parecido com o experimentado por Nelson Cruz na Barroquinha das décadas de 50 e 60: muitas moradias em pouco espaço, vizinhança conhecida, diversas demandas sociais.
No ponto da calçada onde antes havia uma placa alusiva ao patrono da rua, resta apenas a pedra fundamental. Em frente, o Centro Educacional Francisco de Assis Melo guarda duas páginas de uma biografia resumida de Maleiro, distribuída na ocasião da cerimônia. "Parece que ele era uma pessoa do fogo, dos tambores", esforça-se a pedagoga Márcia de Ceutas Melo, dona da escola e principal responsável, na comunidade, pela divulgação do nome.
Batalha pela memória
O registro sobre a vida e a própria batalha para que Nelson Maleiro nomeasse uma rua de Salvador foram feitos pela Associação de Amigos de Nelson Maleiro, criada em 96 pela afilhada Ivete Lima Cardoso e o irmão dela, Ivan Lima. O grupo formado por dez integrantes detém o espólio cultural do carnavalesco depois da segunda mulher dele, Zilda Santos (falecida em 2003), ter doado todas as fotos e os poucos objetos que restavam de sua coleção.
A ata lavrada em 2003 oficializou o trabalho abnegado de pessoas que conviveram intimamente com Nelson Cruz. "Passamos 14 anos esperando que alguém fizesse justiça à memória dele", reclama Ivan Lima, sobre o ídolo, morto em 1982. "Nelson Maleiro é o negro mais importante do Carnaval baiano", afirma, categórico. A forma empolgada, veemente e sem ressalvas com que falam sobre a personagem dá até uma conotação messiânica. "Mas não é fanatismo, não, o que sentimos", nega Ivete. "É uma admiração muito profunda por um homem de grande caráter".
A rua em homenagem ao artista só foi batizada em 1996 depois de muita insistência da dupla, acatada por um projeto de lei do então vereador Germano Tabacof. Na moção para nomear o logradouro, o vereador fez a homenagem: "Dar o nome de Nelson Maleiro a uma rua da nossa Salvador é resgatar uma dívida para com uma figura popular `coração maior do mundo", homem de bem, correto pai de família e, sobretudo, um autêntico fazedor de alegria"
Além desta iniciativa, apenas uma referência ao Gigante de Bagdá feita pelo desfile do Ilê Aiyê no Carnaval de 1996, sob o tema Perólas negras do saber. Manter viva a memória de um artista independente, representante das classes menos prestigiadas parece ser mais difícil do que enfrentar o próprio dragão de São Jorge. O Centro de Estudos Afro-Orientais, órgão suplementar da Universidade Federal da Bahia, que simboliza as duas inspirações culturais mais marcantes do trabalho de Maleiro (a África e o Oriente), é um exemplo de como apenas duas décadas de distância entre a morte e a atualidade podem levar a um esquecimento quase completo. "Estou ouvindo falar dele pela primeira vez", revela o doutor em antropologia social e diretor do Ceao, Jocélio Teles. "Mas é capaz de alguém aqui ter uma informação, só que todos estão em recesso", complementa.
O pesquisador Reinaldo Santana, também chamado Landê Onawane, uma autoridade em personalidades negras de destaque, não possui maiores detalhes biográficos. "Sei que ele era um dos homens mais requisitados para fazer atabaque. Foi um dos fundadores do Mercadores de Bagdá", sugere Landê.
Sepulcro da alegria
Sintoma da doença social pelo efêmero, a segunda morte de Maleiro consegue sepultar a premissa de uma alegria atemporal. "Maleiro foi um nome poderoso como Dodô e Osmar. Só que eles tiveram uma visibilidade maior. O Carnaval de Salvador deve um circuito de Nelson Maleiro", reforça o compositor Walter Queiroz. "Compararia Nelson a outras figuras, como Mestre Bimba, Mestre Pastinha, Waldemar Santana (o Leopardo Negro), os mais puros representantes da cultura popular nativa que a Bahia deixa se perder na memória. Nelson Maleiro deveria ser cultuado e reverenciado, pelo menos todas as vezes que começasse o Carnaval", critica o cronista Ruy Botelho.
O historiador Jaime Sodré, que considera "a dívida muito grande e a obra de Maleiro de extrema importância", pensa em inaugurar um memorial no antigo local onde era a oficina. Hoje, não passa de uma quitanda vendendo utensílios kitsch para aniversários. No imóvel de número 28 da Baixa dos Sapateiros, dona Emília toca seu comércio sem saber muito do antigo inquilino daquele lugar. As informações são dadas pelo vendedor ambulante Claudionor Vieira, o Macarrão da Barroquinha. Com o físico franzino que sugere o apelido, ele trabalha na área desde 1972. "Maleiro fazia aqueles bichos bonitos para sair no Carnaval", comenta, relembrando os carros alegóricos. "Não era um homem rico, era uma pessoa humilde, mas muito prestativa. Sempre ajudava as pessoas".
Faltam dois dias para o Reveillon de 1982. Nelson Cruz sai da casa da segunda mulher, Zilda Santos, no bairro de Castelo Branco, pensando em voltar para o trabalho na oficina. No ponto de ônibus, sente uma tontura, mas não pede ajuda a ninguém. Tomba ali mesmo, vítima de um derrame cerebral. Vai sobreviver por mais seis meses sem conseguir dizer uma só palavra. Internado no hospital do Exército, na Ladeira dos Galés, vive um período na companhia praticamente exclusiva da mulher. "Ela não deixou ele morrer à míngua", elogiará a afilhada Ivete. Depois do derrame, Maleiro se afasta das atividades culturais. Nas vésperas do Carnaval do ano seguinte, o Jornal da Bahia dedica uma reportagem à ausência do criador dos mais inovadores. "Sem Gigante, festa não é tão brilhante" é o texto publicado em 10 de fevereiro de 1981.
Um câncer de próstata fora diagnosticado em junho de 1980, mas ele recusara o tratamento. A madrugada de 9 de junho de 1982 reserva para Maleiro a viagem longa, a partida da estação vida. Em casa, pela manhã, se preparando para ligar para uma rádio e participar de um programa de perguntas sobre a Copa de 82 (cujo início será em quatro dias), Ivan Lima recebe a notícia com a dor de quem não pôde se despedir de um viajante querido. O choque tira dele a reação de ligar para a rádio, não mais para concorrer em uma gincana de prêmios, mas para informar o sepultamento de um ídolo momesco.
Sem saber da morte, a cidade não se mobiliza para o enterro, uma cerimônia no Campo Santo com a presença de menos de 50 pessoas. Em Saubara, foi filho de pescador, na capital se metamorfoseou em artesão abençoado, criador contumaz, atração de carnaval, artista de TV. Na morte, virou mito esquecido, redentor silencioso da raça, capítulo passado de boca em boca nas ruas da Velha Bahia. É bem capaz de estar nas entrelinhas de algum romance de Jorge Amado do mesmo jeito como viveu, sem fazer alarde, só aguardando o momento certo de ser notado."
Transcrição literal de trecho do depoimento em vídeo de Orlando Campos, criador do Trio Elétrico Tapajós, referindo-se a Nelson Maleiro
Jornal A Tarde - 16/01/2010
[...] pronto, alí já tava, é... vamos dizer 60% do trio elétrico já pronto. Aí eu fui ao Nelson Maleiro. Nelson Maleiro era um carnavalesco que tinha uma oficina de instrumentos de couro alí na Barroquinha e eu conhecia, né? Aí eu fui lá: - "Nelson, eu quero surdo, bombo, essa coisa toda". Ele era... era o gigante... era o carnavalesco... foi o precursor daquele Mercadores de Bagdá. Ele saia como gigante, né? E tinha a oficina e fazia os instrumentos. Ele: diz: - "você tem os couros?" Né? Naquele tempo a gente matava gato, carneiro e couro de jibóia, prá fazer pandeiro, cuíca, surdo, essa coisa toda... eu digo: - "eu tenho... lá no subúrbio tem uns couros de carneiro"... - "traga, pra ficar mais barato pra você". Aí eu levei... fiz todos os instrumentos de percussão lá com Nelson, aí comecei a formar a banda. [...]
Obrigado, Dan, também já havia visitado o "poucodetudo", e ví que ali tem muito conteúdo. Uma proposta difícil de levar (talvez nem tanto quanto a minha própria), mas bem conduzida por você. Então, ficamos assim: links trocados.
ResponderExcluirAbraços, sucessos!
Roberto luis.
Graça, sempre que chega o carnaval lembro de Nelson Maleiro, fui princesa em seu carro alegorico no ano que saiu como tela uma balança, nunca mais esqueci, passando pelo Garcia, a ponta da balança bateu em uma marquise, eu me sentia a própria, adorava. Hoje tenho 53 anos.
ResponderExcluirA Bahia institucional precisa reconhecer os baianos que fizeram alguma coisa pela cultura, e não ficar valorizando os que agora se beneficiam dela como copiador e não como criador. Precisamos divulgar esse informativo para que todos saibam dos precurssores de tudo isso que hoje aconteçe. Sr governado e prefeito está mais que na hora de valorizar nossos artistas, mesmo os que ja se foram sem nenhum reconhecimento. Viva a Bahia, viva os baianos e criadores da alegria e felicidade do nosso povo. Parabéns
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirA memória da Bahia
ResponderExcluirque não se apaga.
Obrigado, Herculano. Não se apaga a história, mas bem que a nossa anda precisando reacender alguns capítulos, oferecendo mais visibilidade a empreendedores pioneiros que abriram caminhos e possibilidades, exatamente como Nelson Maleiro.
ResponderExcluirParabéns pelo blog "Por que você faz poema?".
Abraços,
Roberto Luis
Prezado Roberto Luis,
ResponderExcluirMaravilhoso o artigo! É o merecido prestígio por pessoas que são contributas incansáveis da cultura, da vida da comunidade.
Infelizmente existem muitos casos de falta de reconhecimento a tão nobres personagens, contudo existem pessoas como0 você, querido escritor, que com a sua escrita, faz a justiça merecida . Precisamos sim prestigiar e dar a conhecer os nossos expoentes. Sei que às vezes se torna uma tarefa difícil face a falta de material bibliográfico, de testemunhas que deponham oralmente, de fotografias mas com esforço se faz alguma coisa.
Prestígio para o "Digante" Nelson Cruz (Maleiro). Parabéns para ele!
Parabéns amigo Jorge Luís de Abreu -Teológo, Pesquisador , História da Bahia.
PS,: Tenho tentado obetr material sobre os desfiles dos carros alegóricos no bairro da Liberdade, do carnavalesco Jiboia, entretanto as pessoas as quais contactei não deram muita importância, prometendo-me algumas histórias, algumas fotos (se a achasse) para depois...
Obrigado, Jorge Luis. Na verdade, eu não escrevi quase nada nesta publicação. São transcrições, provisórias, de fontes citadas ao longo da postagem. Se eu pretender falar com minhas palavras sobre Nelson Maleiro, tudo o que eu poderei contar é do rápido encontro que mantive com ele, na oficina da J. J. Seabra, (Barroquinha) quando da encomenda de umas ferragens para atabaques, ali pelo no início da década de 1980. Ele já era uma lenda, mas uma lenda viva e apenas para poucos, que conheciam a importância de seu trabalho. Quantos artesãos será que podemos encontrar na atualidade, os quais terão aprendido alguma fração da arte e da magia que se aconteciam naquela "tenda dos milagres"?
ExcluirJá tinha ouvido falar, através do meu pai, de um bloco de carnaval Mercadores de Bagdá e de um homem que fazia as alegorias desse bloco. No entanto foi esse artigo que me fez compreender a importância de Nelson Maleiro para o carnaval soteropolitano. Fico agradecida por tanta informação.
ResponderExcluirMirela, obrigado pelo comentário.
ExcluirDaqui para a frente, se tornam cada vez mais raros relatos desse tipo, como fez o seu pai, pois já não serão os filhos, mas os netos, e se a memória não permanecer viva, ativa, os traços se perderão. O ideal seria que a cultura local fosse bem mais valorizada, mas nos cabe uma boa parte de responsabilidade nessa tarefa, não apenas aos descendentes do artista. Abraços!
Caro Roberto,
ResponderExcluirSou Max Matos, pai de Mirela que comentou sobre Nelson e você respondeu.
Seu Nelson, eu conheci de perto, pois era pai de Nilton que integrava o conjunto musical (que hoje chamam Banda) junto comigo na época da jovem guarda. Mas muito antes disso eu o via ainda menino como o "Gigante de Bagdá" destaque do bloco Mercadores de Bagdá muito rico em originalidade e por isso era o supercampeão dos carnavais.
Tenho um blog: maxmatosdizendotudo.com.br onde escrevo sobre todos os assuntos como faço há mais de vinte anos na coluna Espaço do Leitor do jornal A Tarde.
Foi um prazer,
Max Matos.
Prezado Max Matos. Obrigado e parabéns pelo seu blog, muito interessante. Vejo que você também é(ra) um músico e viveu quase a mesma realidade que eu. A minha infância/adolescência se passou no bairro da Liberdade, mais precisamente entre a Rua do Curuzú e a Rua Lima e Silva, (ou Estrada das Boiadas). Não era muito fácil ter acesso ao movimento de carnaval no centro histórico. Nossos pais sempre nos alertavam sobre os perigos da rua. (Naquela época ainda a irreverência ainda eram as "lança-perfumes", além das bebidas alcoólicas).
ExcluirMas ouvíamos os ecos dessas manifestações, mesmo tendo um certo medo das batucadas e blocos, trazendo como sempre a balbúrdia e a multidão.
Gostaria de convidá-lo a escrever um artigo sobre as suas vivências musicais (e culturais) desse período, enfocando também a temática que estamos comentando aqui.
Abraços, sucessos!